Resposta a Jonas Maria.

Eu Sou RAD
11 min readMay 24, 2020

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Vídeo em questão: o radfem e os homens trans.

Dedicado especialmente a duas mulheres a quem quero muito bem. Larissa e Jak.

Falas transfóbicas? Com calma, parça. A gente já já chega lá.

Você cita partes aleatórias que “achou interessante”, mas vou dar uma resumida rápida sobre o que o texto explica. A isso eu chamo de ser ética e coerente no debate, sem querer puxar a sardinha para o teu lado.

O texto foi escrito por uma escritora lésbica e feminista radical estadunidense, Bev Jo, e está em uma plataforma pública[1] onde várias mulheres escrevem a respeito do Feminismo Radical. São mulheres que defendem outras mulheres, que estão contra a prostituição e pornografia, que são críticas de gênero e entre tantos interesses também estão os das mães e das crianças. Ou seja, pautas básicas do feminismo como um todo, ou ao menos deveria ser assim.

Ela começa, em seu texto, falando sobre a situação de lésbicas e gays que vivem no Irã, que não têm seus direitos reconhecidos e acima de tudo, é considerado como ilegal e dependendo da situação, pode ser considerado como um crime de pena capital. Para o islã, a homossexualidade é considerada como pecado[2] e não rara vez entendem como uma doença. A autora comenta que é mais fácil a mulher “virar homem” e o homem “virar mulher” para ser aceito na sociedade iraniana e que também pagam para essas pessoas cirurgias e hormônios, contando de não ser gays ou lésbicas. É nesse contexto que você cita a primeira frase de “é mais fácil que ser uma mulher velha”, mulher lésbica e velha nessa sociedade islâmica, por isso ela preferiu transicionar para “homem”. Ela diz que foi a sociedade quem jogou mulheres contra mulheres e incita à sociedade a terem ódio contra as mulheres e lésbicas. E sim, realmente ela não menciona qual documentário ela assistiu. Uma pena.

Bev, ao parecer, estuda[3] essa questão de homens reivindicarem a identidade feminina desde 1971, quando um homem começou a assedia-la sexualmente e dizia para ela que ele se sentia mulher e encontrou nisso um meio perfeito para continuar assediando não somente ela, mas várias outras mulheres lésbicas.

“Aquele homem tinha um status de ‘lésbica’ que nunca teria conseguido como um homem comum. Logo ele se apresentou como jornalista, autor, cantor, músico e compositor ‘lésbico’, fazendo tudo terrivelmente mal. Ele mentiu para assumir posições de poder, inclusive em uma antiga publicação feminista, ‘Off our backs ‘, para que elas imprimissem e ele se gabasse de seu artigo chamado ‘sexo lésbico’. Ele se encarregou de que nós não tivéssemos um espaço privado somente para mulheres em Bay Area, porque eram esses espaços que ele fazia questão de invadir”.

Disso ela comenta do caso da Teena[4] Brandon e como a usam como token do movimento trans nos Estados Unidos. Para quem não sabe quem foi Teena, ela era uma lésbica butch que viveu entre os anos 70 e 90, quando foi estuprada e assassinada por homens que exigiram que Teena comprovasse que era homem. Teena teve que se passar por homem para se relacionar com uma mulher. Era então Brandon. Mas, aqui vem a questão: estamos falando dos anos 70 onde lésbicas eram muito mais perseguidas que hoje em dia e eram “obrigadas” a viver no armário ou assumir identidades masculinas para poderem andar nas ruas e viver. Bev também diz o mesmo, afirmando que ela não era “homem trans”, muito menos “transgênero”:

“As entrevistas que li com a amiga e com a mãe [de Teena] mostram claramente que ela se identificava como lésbica, não como homem (…). Esta é uma questão feminista porque eles estão reescrevendo nossa história [das lésbicas] e são intrinsecamente anti-feministas, anti-mulheres e anti-lésbicas”.

Teena Brandon e sua então namorada, Lisa Lambert.

A autora continua colocando a pauta das lésbicas em questão, afirmando algo óbvio: nenhuma mulher quer crescer com as opressões socioculturais que temos e que apenas queremos ser livres para decidirmos sobre nossas vidas.

“Eu certamente odiava todas as maneiras pelas quais fui vitimada por ser uma garota. Mas eu nunca quis ser um menino. Os meninos eram aqueles homens desagradáveis e cruéis que eram obscenos, atormentavam meninas e torturavam animais. Eu amava outras garotas e era essa a minha comunidade. (…) Por isso não entendo como mulheres podem amar tanto os homens a ponto de querer tornar-se um deles. Que fique claro que além das aparências superficiais, ninguém pode mudar de sexo como não podem mudar de espécie. As cirurgias às quais a mulher se submete para ser homem nem chegam perto da realidade. É como se tudo fosse uma grande mentira que favorece a indústria farmacêutica, médicos, hospitais, psiquiatras e a mídia patriarcal, que fazem fortunas em cima dos corpos das mulheres. Para que mulheres tentem isso [ser homens], a taxa de câncer e outros efeitos secundários à saúde terão consequências astronômicas. Mas o verdadeiro dano é para as comunidades de nossas mulheres, onde os ‘novos homens’ exigem entrar e frente a outras mulheres, elas ainda nos desprezam por sermos mulheres. Novos grupinhos são criados para as ‘FtM’ transexuais. Pior ainda, meninas são pressionadas a fazerem cirurgias e tomarem hormônios, afetando-as de maneira irreparável”.

Aqui vem a segunda frase que você menciona do texto de Bev Jo: “Uma ‘FtM’ conhecida disse que ela simplesmente não queria mais ser estuprada”.

Agora vou te responder: Jonas, essas mulheres sabem “pela metade” o que estão fazendo, assim como você também sabe e soube em seu tempo até transicionar. Todas essas mulheres rejeitaram veementemente o papel de gênero assignado a nós mulheres. Nenhuma delas queria ter relações afetivas com homens, elas não queriam ser “corrigidas” para ser heterossexuais. Elas todas eram lésbicas porque se relacionavam com outras mulheres, isso é um fato e nada do que você diga, mudará isso, você aceitando ou não, elas eram lésbicas sim. Não há uma lésbica neste mundo, em sã consciência, que queira “mudar o timão de seu barco” e direciona-lo a homens. Elas são felizes com suas companheiras, com suas famílias.

Marcela Gracia e Elisa Sánchez. Elisa não era homem trans. Ela era mulher e teve de usar a identidade masculina para poder viver com Marcela.

Você diz que Bev Jo usa a exceção como regra ao dizer que mulheres buscam a transição como um meio de fuga da violência patriarcal à qual estão submetidas. Não é exceção. Todas as lésbicas com quem converso, absolutamente todas elas foram e são ainda vítimas de algum tipo de violência. Casos na mídia de estupro não faltam, sobram. Pornografia relacionada ao tema, também não. Inclusive, estuprar lésbicas é fetiche de homens. O patriarcado é tão sujo, perverso, doentio que faz com que mulheres acreditem ser erradas ao se relacionarem com outras mulheres, que nasceram em corpos errados porque são mais “agressivas”, porque gostam de brincadeiras de “moleques”, porque não são facilmente domáveis e domináveis. Não são raras as exceções — como você se refere, as mulheres que rejeitam seus corpos por ser fortemente erotizados e fetichizados por homens. Muitas delas, inclusive você, rejeitaram seus corpos em algum momento da vida, para não ser alvos de predadores.

Melania Geymonat e sua namorada foram atacadas por homens em um ônibus de Londres.

Nisso queria te fazer uma pergunta e gostaria que você pudesse ser realmente sincero (vou te tratar no masculino): quantas vezes você e tua namorada não foram alvos de olhares perturbados de homens por aí? Será que você nunca ouviu alguém se referir a você de maneira grotesca e até amedrontadora? Eu sim. Conheço mulheres e tenho amigas lésbicas que foram alvo de “perguntas” de homens quando sabiam que elas eram lésbicas: você é lésbica porque nunca encontrou um homem que te fizesse sentir mulher. Será que você nunca se perguntou por que nossa sexualidade “tem que” perpassar pelo tino masculino?

Você diz que “antes de ser homem você é trans”. Não, não é. Você não nasceu trans, ninguém nasce trans. Você foi uma menina que cresceu e não se encaixava nesses estereótipos que forçam mulheres a ser “mulheres”. Talvez em algum momento você rejeitou tudo isso que tentaram te impor e tudo bem rejeitar toda essa porcaria que tentam a toda custa nos impor como condição essencial do “ser mulher”. Ser mulher não é usar vestido, gostar de batom e salto alto. E não há absolutamente nada de errado na mulher que ama outra mulher. Ser mulher é condição biológica.

Antes de seguir com o trecho que você expõe no vídeo, eu coloco este (que você muito propositalmente deixou de lado):

“Muitas das mulheres que querem ser homens sofreram uma lavagem cerebral em idolatrar homens que desejam ser ao mesmo tempo ser homens e ter relações sexuais com homens, como muitas das jovens mulher-para-homem estão dizendo (como Pat Califia e Loren Cameron) — e se identificando como ‘homens gays’ portanto, é um mito que todas as ‘FtM’ sejam lésbicas, já que algumas voltaram aos homens e, portanto, são mulheres héteros ou bissexuais”. (…) É uma honra ser chamada de mulher. Não as insultarei com pronomes masculinos. Os machos são nossos inimigos, e não estou pronta para chamar essas mulheres de inimigas. Sinto uma diferença com elas do que com os ‘MtF’. Elas ainda são mulheres, não importa como se alterem. Tudo sobre elas ainda parece feminino para mim, apesar de seu exterior — o que me diz o quão diferentes elas são dos homens que afirmam ser mulheres, porque os ‘MtF’ parecem mais masculinos do que muitos homens. Há algo muito mais profundo do que os hormônios. ‘Mtf’ são predadores e desagradáveis quanto os piores homens. E as ‘FtM’ ainda são do sexo feminino. Nada pode mudar isso. Conheço tantas lésbicas que se suicidaram por causa da opressão.”

— e vem a frase que você colocou aleatoriamente:

“Isso [a transição] parece uma variação do suicídio, exceto pelo aumento do privilégio. Mas algumas já se arrependeram. Algumas estão querendo voltar a ser aceitas como mulheres e voltar à comunidade lésbica. Apesar de toda a propaganda misógina do patriarcado, algumas dessas mulheres estão percebendo o que muitas de nós sabemos o tempo todo: não há nada melhor do que ser mulher”.

Jonas, não é preconceito, pior, ninguém ignora o estigma que vocês vivem. Pelo contrário, estamos cansadas (realmente cansadas) de vermos diariamente mulheres sendo estupradas, mortas, sequestradas e/ou corrigidas em suas sexualidades por homens. E nem vou entrar no mérito da questão racial, porque sim, mulheres negras sofrem todo tipo de opressão, preconceito e violência nas ruas. O que você diz de perder amizades, família… quantas lésbicas também não perderam? Isso não é de hoje, infelizmente. Isso advém desde muito antes, séculos de opressão que não mudaram em nada.

Novamente você inverteu a ordem propositalmente, agora sobre os pronomes, o que já traduzi acima. Me diga uma coisa: você tinha vergonha de ser lésbica?

Sobre as cirurgias. Sim, são mutilações de órgãos saudáveis. São sim um atentado contra um corpo que nasceu perfeito, que deveria ser amado da maneira como ele veio ao mundo. Qual o problema em ter seios? Quem sataniza, vulgariza, erotiza, fetichiza nossos órgãos não somos nós. São os homens. E eu entendo totalmente tua repulsa, porque ela também é minha. Coloco um exemplo “clássico”: você já viu que inúmeras mães usam fraldas ou qualquer outro paninho para cobrir o seio e ao bebê enquanto amamenta? Já parou para se perguntar por que dessa atitude? Além do óbvio da sociedade castigar a mulher como “vulgar” ou “exibida”, um ato tão normal de alimentar o próprio filho é motivo para homens se masturbarem ao ver essa cena.

Uma pessoa normal não deveria ver algo sexualizado no ato de alimentar um bebê.

Nada do que escrevo são coisas que tirei da minha cabeça. Sites como “pornhub” estão aí para demonstrar que eu tenho razão para dizer que homens pornificaram tudo, até um simples ato de lactar, não só mulheres, mas até crianças entraram nesse jogo perverso, como um menino “drag” que usa a alcunha de “queen lactatia”. Percebe o perturbador que é a sociedade na qual vivemos?

Quando Janice Raymonds diz que a pessoa se torna alienada ao tomar semelhante atitude contra seu próprio corpo, ela não está errada. O discurso ao qual vocês foram submetidos prevê e instiga a alienação. É um meio de buscar “uma cura heterossexual” para algo que é normal: o amor entre duas mulheres. Você não se aceitou lésbica, então tinha uma visão de mundo homofóbica, mas agora como “homem” você passa a naturalizar como normal uma relação “heterossexual”? Estamos batendo nesse ponto há anos de que o movimento trans só é válido senão, por e para homens, seja para eles satisfazerem seus fetiches dúbios e sórdidos e ser aprovados e garantizados pela sociedade hipócrita, como sendo também o meio que eles encontraram em continuar exercendo todo seu poderio frente a nós, mulheres, e ditando ordens de como devemos ser, sentir e agir dentro do que eles consideram “legítimo”.

Violência ética? Feministas radicais fazem isso? Não. Quem comete todo tipo de atrocidade e violência contra qualquer pessoa não somos nós. Não somos nós quem provocamos em você esse ódio e repulsa pelo seu próprio corpo.

Conceituar gênero… há anos estamos também nisso e não só “agora”. Nossas predecessoras já falavam sobre a hierarquia que nos foi e ainda nos é imposta. Conceituar gênero é falar sobre todas as violências que o patriarcado exerce diariamente sobre todos os corpos viventes deste planeta.

O que todas precisamos entender é que: não há nada, absolutamente nada de errado em nossos corpos. Não nascemos com nada sobrando, nem faltando. Tudo nele tem sua razão de ser e existir. O problema reside, novamente, neste sistema sórdido e cruel que desumaniza não só mulheres e tiram de nós o pouco que nos resta e nos obriga a nos encaixarmos no que ELES querem que sejamos e ainda assim, não somos suficientemente “boas” para sermos encaixadas… não há problema algum em ser lésbica e ser mulher. Como disse Bev Jo: “não há nada melhor do que ser mulher” e eles sabem disso… e é o motivo deles terem inveja dos nossos corpos.

O que você diz em ser “falas transfóbicas” eu vejo como uma honra em resgatar minha mulheridade, saber que minha força vem do meu útero, que eu posso ter uma infinidade de orgasmos enquanto homens morrem no primeiro espirro. Eu honro outras mulheres que são mães, que tiveram essa força de abrigar em seus ventres uma vida, que são tão poderosas a ponto de darem o primeiro, maior e mais potente alimento de nossas vidas que vem carregado de amor visceral. Eu temo pelas minhas irmãs e por elas eu continuo lutando, dizendo a todas, inclusive a você, que não nascemos para agradar homem. Nossa vida não gira ao redor nem em função a eles. Nossa vida e existência é completa por si só. Nossa força vai muito além do que podemos imaginar e é essa a única razão de não termos acordado AINDA e eles usarem a nossa ignorância a favor deles para continuarem exercendo seu “poder”.

Mas esse tempo está chegando ao fim e eles sabem disso.

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[1] https://radicalhubarchives.wordpress.com/2011/06/10/guest-post-bev-jo/

[2] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2016/06/17/lesbica-conta-como-e-viver-com-a-namorada-no-ira-onde-ser-gay-e-ilegal.htm?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

[3] Ela usa a palavra “horrorizada”.

[4] Sobre a vida de Teena existe um filme que retrata o ocorrido, que é “Meninos não choram”.

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